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sábado, 9 de abril de 2011

Polêmico Sangue

"É a verdade o que assombra
O descaso que condena,
A estupidez, o que destrói

Eu vejo tudo que se foi
E o que não existe mais
Tenho os sentidos já dormentes,
O corpo quer, a alma entende.

Esta é a terra-de-ninguém
Sei que devo resistir
Eu quero a espada em minhas mãos.
"

(Metal Contra as Núvens - Legião Urbana)





Semana passada, na sexta, houve aqui na faculdade uma campanha de doação de sangue chamada Universitário Sangue Bom... O objetivo seria trazer um grande número de estudantes da universidade para uma doação em massa. O Gui já falou sobre isso no blog dele até, taí o link...

Eu sou uma pessoa que sempre gostou de ajudar as pessoas. Não para aliviar a minha consciência ou para me "sentir útil", mas por simples prazer de ajudar a quem precisa. Por isso, desde que eu era pequeno, eu sempre quis doar sangue... Eu vejo o ato como uma maneira prática de ajudar quem está precisando muito daquilo. Já fazia um tempo que eu não doava sangue, mais ou menos um ano, pois em abril do ano passado eu tive dengue, e quem tem esse tipo de doença tem que esperar um bom tempo para poder doar de novo...

A campanha caiu como uma luva pra mim. Eu queria doar sangue, e não precisava interromper minha rotina acadêmica para isso. Por isso, assim que tive um tempinho, logo de manhã, eu fui ao Instituto Biomédico para  realizar a minha boa ação do dia.

Esses procedimentos de doação são muito burocráticos, e com razão. A "qualidade" do sangue deve ser assegurada, afinal de contas, o objetivo é salvar uma vida com aquele sangue, e não fazer a pessoa ficar mais doente. Tudo bem, vamos lá responder questionário, CPF, endereço, bla bla bla... A última etapa era a triagem: uma espécie de entrevista baseada nos dados respondidos no questionário.

Eu, claro, respondi o questionário da maneira mais sincera possível, se é que me entendem. Tá, haviam perguntas que eu sabia exatamente porque estavam lá (já teve relações sexuais com pessoas do mesmo sexo? Teve mais de um parceiro sexual do mesmo sexo nos últimos 6 meses?), mas eu não acreditava que aquela triagem fosse ser tão discriminatória rigorosa a esse ponto:

Entrevistadora: Deixe-me ver aqui... Humm... Você já fez sexo com outros meninos, certo?
Eu: Sim... Eu sou homossexual...
Entrevistadora: Então você só faz sexo com meninos? Ou meninas também?
Eu: Não não, só meninos...
Entrevistadora: Aqui diz que você teve dois parceiros distintos nos últimos meses, certo?
Eu: Foi isso mesmo...
Entrevistadora: E quando foi a ultima vez que você teve relações com meninos?
Eu: Humm... Tem mais ou menos 2 me...
Entrevistadora: Desculpe, você não vai poder doar sangue...
Eu: Ué... Mas por que não?
Entrevistadora: Existe uma norma da ANVISA que não permite que você doe sangue...
Eu (confuso): Norma da ANVISA?!
Entrevistadora: Mas não se preocupe, eu vou imprimir um comprovante certificando que você esteve aqui, mas não pode doar sangue. Com ele você poderá abonar uma falta, caso tenha tido que faltar alguma aula para estar aqui...

Nem precisa dizer que eu saí perplexo daquele lugar. Me senti sujo naquela hora, um lixo. Eu nunca passei por uma situação de discriminação antes, nem de leve. O máximo que já aconteceu foi eu tomar as dores de um grupo de discriminados, ou até mesmo de uma pessoa. Mas diretamente, eu nunca fui discriminado por causa da minha sexualidade. Foi muito impactante na hora, e eu fiquei com aquilo na cabeça o dia todo. E pra mim, como estudante da área da saúde, foi uma espécie de desencanto. Como que pode a nossa vigilância sanitária ainda usar esses critérios retrógrados para garantir a "qualidade" do sangue? É mesmo preciso discriminar pessoas e perder litros de sangue saudável só para continuar com os mesmos critérios e com os mesmos preconceitos?

É claro, eu não vou dizer que não existe promiscuidade entre os homossexuais... Mas existem outros fatores que influenciam e muito nisso! Primeiro, o que que tem de errado em ser promíscuo? Hoje em dia, a pessoa não se infecta por HIV por ser promiscua, ela se infecta por que quer... Existem inumeros mecanismos que podemos lançar mão para garantir a nossa saúde, mesmo fazendo sexo com a torcida do flamengo inteira... Portanto, a não ser que o cara seja muito burro, ou que ele tenha uma forte ascendencia ao suicídio, o cara vai saber se proteger e garantir a "qualidade do seu sangue", assim como eu sempre fiz.



E depois, impedir os gays de doarem sangue é, alem de nos tacharem de burros e ignorantes, dizer que todos somos promíscuos. Como isso pode ser verdade em um grupo tão heterogêneo quanto o dos homossexuais? É como dizer que toda loira é burra, ou que nenhum negro é capaz de passar para uma universidade pública nas condições normais de concorrencia (outro dia eu falo sobre cotas, hahah) , ou seja, é DISCRIMINAÇÃO...

Foi assim que eu me senti naquele dia, discriminado. Pior, me senti impotente, e isso ficou ainda mais forte essa semana. Quem acompanha o noticiário já soube do "Massacre de Columbine" brasileiro, que ocorreu ontem em Realengo (Rio de Janeiro). Foi uma tragédia nunca antes vista por aqui, dezenas de crianças feridas, 11 mortas... A maioria com ferimentos graves, na cabeça ou no abdômen... Esse é o momento em que o Hemorio mais está precisando do nosso sangue, e eu não  posso doar porque eu sou homossexual. Nunca usei drogas injetáveis, ainda não fiz tatuagem, não coloquei piercing, a ultima doença infecciosa que tive foi há mais de um ano... Tenho todos os requisitos de um doador ideal, só não posso doar porque tenho relações com pessoas do mesmo sexo...



Logo depois de deixar o Biomédico, eu fui pra casa do Gui, e contei o que havia acontecido... Ele ainda questionou: Por que você não mentiu? Não poderia mentir, por n motivos. Claro, eu não condeno e nem desaprovo a pessoa mentir sobre a sexualidade em um momento como esse. É uma questão muito delicada, envolve vidas,  em ambos os lados.

Eu fiz a minha escolha... Eu optei pelo resultado a longo prazo. Claro que eu adoraria ajudar uma pessoa com o meu próprio sangue, mas diante de uma situação como essa, é preciso pensar sobre quais atos você prioriza naquele momento. Eu me recuso a mentir sobre a minha sexualidade em consideração a mim, a todos os que sofreram tanto e por muitos anos tiveram que mentir sobre a sexualidade para ter uma sobrevida, e principalmente, aqueles que ainda estão por vir, para que eles não precisem ser vítimas dessa sociedade preconceituosa em que vivemos.

Eu sei que não vou mudar o mundo com isso, sei que uma vida pode ser perdida pelo simples fato de eu não ter mentido naquele questionário... Mas não é justo comigo, nem com todas essas pessoas que falei. Eu estou em um momento da minha vida em que mentir ou até mesmo omitir minha sexualidade está simplesmente fora de cogitação. Eu sofri muito para chegar onde eu estou agora, eu preciso dessa fase de autoafirmação da sexualidade, eu tenho esse direito. E os outros precisam que mais pessoas como eu contextem essas normas discriminatórias, para que os gays do futuro não precisem passar por isso. Se continuarmos a ser coniventes com o preconceito, até quando teremos que mentir para poder exercer o simples direito de ajudar ao próximo?

"E nossa história não estará pelo avesso
Assim, sem final feliz.
Teremos coisas bonitas pra contar.



E até lá, vamos viver
Temos muito ainda por fazer
Não olhe pra trás
Apenas começamos.
O mundo começa agora
Apenas começamos
.
"

(Metal Contra as Núvens - Legião Urbana)





É isso aí, gente! Mais importante do que desabafar é demonstrar minha insatisfação... Pelo menos já é o início pra que alguma coisa efetiva seja feita...

Um beijo a todos, um abraço apertado... Luto pelas vítimas da chacina de Realengo, nada  nos ultimos dias me deixou tão aflito e tocado quanto o ocorrido lá...

Até o Próximo post!

18 comentários:

Raphael Martins disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raphael Martins disse...

Eu comentei sobre esse assunto no post do Gui. Eles devem achar que se alguém receber sangue de gay, vira gay tb... tipo que uma conversão vampiresca, só pode!!

"Olha o sopro do dragããão!!!"

Abcs!!

| D! disse...

Um essa coisa toda muda, è assim que costumo pensar..

Infelizmente..

Antonio de Castro disse...

quando vc comentou no twitter fiquei assustado pq eu nao fazia ideia q isso existisse.

depois eu vi q meninas q fazem com meninas (um parceira em um determinado periodo) pode doar, como os casais heterossexuais. fiquei mais confuso ainda.

nao me pareceu discriminação. de verdade.

eu queria entender melhor por que. com base em q dados, eles tomam essa precaução? deve ter alguns dados. não é possível q não tenham.

enfim, é lamentável. mas tb dizer que o cara que transa com 25 pessoas em um mês pode doar pq usa preservativo.. ah, não. os "promíscuos" (botei entre áspas pq o critério usado p classificar alguem desse modo é ridículo) deve ter mais chances de contrair esse tipo de doença, eu imagino.

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

É discriminação sim ... pq os héteros não são promíscuos? são tanto qto os gays ... ou, se não são nós tb não somos ... outro detalhe ... se fazem campanhas é pq estão precisando ... então colham e analisem o sangue de cada um. Onde uma entrevista vai dizer alguma coisa? Podemos mentir ou não? Enfim! Já passei por isto e nunca mais doei. Hoje só me submeto ao processo para parentes e amigos e lá eu minto mesmo. Pronto falei! Isto tudo me irrita muito.

bjão

Unknown disse...

Pois é, como bem disse o Bratz, por que não analisam todo e qualquer sangue ao invés de entrevistar e discriminar? Medo dessas transfusões. E meu sangue não dôo. Que morram todos.

Lobo disse...

Sabe, existe uma coisinha de leve chamada EXAME DE SANGUE que assegura que o doador não tem nada perigoso no sangue. Então porque diabos não deixam nem o nosso sangue ir pra triagem? Não entendo.

É por isso que eu não sinto pena. Acho que as coisas só começam a mudar a partir do choque. Deixa gente que precisa de sangue morrer com potenciais doadores embarreirados. Deixa mesmo. Depois reclamam que falta sangue nos bancos...

Gui disse...

Pois é, eu me permito esse tipo de agressão frente a um bem maior. Mas ninguém tem obrigação de fazer isso.

O importante é fazer barulho, tentar mudar isso, o resto, vai mais da ética e moral de qualquer um.

Ro Fers disse...

Fatos como esses é um absurdo, um tremendo preconceito, cujo acho que que deveriam mudar esse sistema de triagem, é uma discriminação humilhante. Até imagino como tu deve ter se sentido.
Forte abraço!

Anônimo disse...

Tem alguma doença, que pegue exclusivamente em gays do sexo masculino tal que justifique essa discriminação? Ou seria a homossexualidade masculina uma doença transmissível?
Sério, queria ver o pessoal da saúde rebolar pra explicar essa questão.

Daniel Braga disse...

Ah, cara.. eu mentiria... é tão tenso isso! Mas não posso doar.. a médica disse que meu sangue ainda não está bom pra doar por causa do meu probleminha, sem contar que MORRO DE MEDO de agulhas, então...

~Até a próxima. Beijos.

*DB*

cubcub disse...

Tenso... Acho uma pouca vergonha esse lance de sexualidade ser critério pra doação de sangue. Tanto hétero descuidado por aí...

Espero que um dia acabem com isso pra que eu possa doar sangue. Eu não consigo mentir, nesses casos. Foda... .-.

Bjo e abraço, o/

Rapha disse...

"Eu sei que não vou mudar o mundo com isso..." engano seu!! Esse é o primeiro passo. Você fez a sua parte. No futuro, quem sabe, de tantas pessoas terem agido assim as coisas sejam diferentes. Eu torço.

Bjs

Anônimo disse...

Eu acho essa norma tão retrógrada. Até entendo que, há alguns anos, nós gays até poderíamos ser considerados grupo de risco.

Mas a permanência dessa norma, julgo, é questão de tempo. Se existe ainda mesmo um grupo de risco, é o de pessoas sexualmente ativas e usuários de drogas injetáveis...

E talvez quanto mais afirmemos que somos gays, mais eles neguem e mais contribuiremos para que eles vejam a qtdade de sangue recusada por regras antigas. Talvez isso mude a situação...

Talvez mude minha postura, de sempre negar que sou gay (na doação ;D)

Xêro!

Luciana Nepomuceno disse...

Afilhado, esse assunto me tira tanto do sério, já peguei tantas brigas e ralei tanto tentando mostrar que é preconceito que evito falar pra não sentir o sangue subir ao juízo...vim aqui mesmo foi pra dizer que me derreti com seu comentário no blog do Rafa. Quero muito ver e abraçar vocês...

Hope* disse...

Esse é o mundo sarcástico em que vivemos... De que me intessa saber se vc gosta de homem ou mulher? É bom saber que vc gosta de gen-te. Qual o gênero não me importa. Causaria-me espanto se não fosse da espécie humana, rs... Não entendo o que muda na vida das pessoas o fato de um outro alguém gostar do mesmo sexo. O que acontece na mente dessa gente capaz ferir, magoar, muitas vezes alguém que ela nem conhece...
Por quê? Isso sim causa-me espanto!
O homem complica demais o que é tão simples, amar...

Primeira vez aqui e feliz!
Abç!

Anônimo disse...

nao vejo discriminacao,já que as perguntas sao para todos doadores.Acho que sao constrangedoras,há de existir um meio de se doar e receber um sangue de forma segura!(considerando a janela imunologica).Fiquei emocionada com seu depoimento Abraços!

Comentarista disse...

Anteontem doei sangue e menti. Sou gay e disse que era hetero. Se as enfermeiras acreditaram, não sei...